Não bastasse a cruel regressividade da carga tributária no país, que mantém os pobres mais pobres e os ricos mais ricos, a olhos nus se vê uma administração tributária contribuindo para aumentar ainda mais essa distância.
Seja suprindo os cofres do BNDES, por meio de transferência do governo federal, com tributos pagos pela massa trabalhadora e pelos médios e pequenos empresários cumpridores das obrigações tributárias para com o Estado, para serem emprestados, a juros subsidiados, a grandes empresários para realização de obras e serviços fomentadores de desenvolvimento. No entanto, tem servido para fomentar fraudes contratuais com o serviço público, superfaturamentos e outras mazelas, dentro e fora do país, cujo produto tem sido usado para remunerar atividades ilícitas de agentes políticos e empresários desonestos como tem revelado ações penais noticiadas pela mídia nos últimos anos.
Seja executando políticas de renúncias fiscais com isenções a determinados segmentos e anistias de dívidas tributárias por meio de reiterados REFIS, que a cada nova ação melhora o anterior em benefício de contumazes contribuintes inadimplentes ou sonegadores em desfavor do Estado e da sociedade, permitindo-lhes o financiamento do crédito tributário não honrado ou sonegado que for declarado até determinada data em condições muito favoráveis e com perdão de quase totalidade dos encargos devidos, por meio de alongados parcelamentos, inclusive, com inclusão de REFIS anteriores, adimplidos ou não.
Em que pese tais fatos levar a RFB a sofrer pesadas críticas, é preciso reafirmar a importância desse órgão criado para conduzir a política tributária do país e abrigar o cargo do agente fiscal de tributos, imprescindível em qualquer estado, por garantir os recursos necessários à sua manutenção e à prestação de serviços à sociedade, e informar que o equívoco está na sua utilização inadequada por reiterados governos, como se tem visto ultimamente.
Pode-se dizer que foi montado um arcabouço na Constituição Federal, mormente, no art. 37, caput e incisos XVIII e XXII; no CTN, Lei 5.172/1966, nos art. 78 e 142, e em leis esparsas, para que o agente de estado, ocupante do cargo com competência para o lançamento do crédito tributário, tivesse o poder para ir atrás e coibir todo e qualquer crime contra a ordem tributária. Porém, essa estrutura vem sendo usada para mitigar a competência e o poder de polícia outorgados por lei aos aprovados em concurso público, nos termos da Constituição Federal, para ocuparem aquele cargo público.
Essa mitigação pode ser observada todas as vezes que a autoridade gestora usurpa e transfere para si fragmentos de competência daquele cargo ao qual a lei outorgou competência para o lançamento, ainda que o detentor dessa função de gestão seja ocupante de cargo do qual se quer retirar parte da competência para entregá-la à função que também ocupa – haja vista a precariedade que a função de livre nomeação e exoneração ad natum carrega em si, nos termos da Constituição e, portanto, não coaduna com o disposto no citado art. 142 do CTN.
Se essa usurpação enfraquece o cargo, de forma reversa, debilita o órgão propiciando um contumaz uso distorcido por governos pouco bem-intencionados.
É, portanto, assim que autoridades gestoras subservientes, atendendo reclamos daqueles governos, tem se valido da usurpação para emitir normas de sujeição e entraves ao agente público com competência para a persecução tributária. Anomalia que tem facilitado sobremaneira as atividades criminosas contra a ordem tributária e administração pública.
Nesse sentido estão vários atos, uns mais, outros menos graves:
– MFP-Mandado de Procedimento Fiscal e sucedâneos, que mitiga a espontânea liberdade do agente tributário detentor de cargo, que passa a agir sob a batuta do detentor de função de gestão;
– Atos de avocação para si, autoridade gestora, de competências do cargo do agente responsável pelo lançamento, expressas em lei, e as devolve por delegação, nos casos que essa autoridade usurpadora entende conveniente, ambas ações por meio de ato administrativo. Já não é mais a lei que fala, mas a vontade subjetiva do agente investido na função, num impertinente e desarrazoado desmando jurídico;
– Acesso imotivado, esse inidôneo instituto, pernicioso a um justo e transparente sistema tributário, foi criado para proteção às avessas de autoridades em todas as funções de poder, as ditas: PPE – pessoas politicamente expostas;
– Lista vip de PPE – pessoas politicamente expostas, imunes ao alcance espontâneo do fisco; sequer seus cadastros podem ser acessados pela autoridade tributária competente, sem que seja admoestada imediata e automaticamente por um detentor de função de gestão, nomeado por algumas daquelas autoridades, para que os motivos do acesso lhe seja informado tempestivamente – numa anômala inversão de valores republicanos, haja vista que por lidarem com a res pública, teriam que ser mais fiscalizadas do que o cidadão comum;
– Lista vip sigilosa – a Lei nº 13.524, de 13/06/2016, ou lei de repatriação de ativos financeiros, permite regalias tributárias aos possuidores desses ativos em suas internalizações, em afronta aos contribuintes que sempre cumprem com suas obrigações tributárias e não praticam evasões de divisas. Na internalização, cobra-se tributo menor e os ativos recebem chancela, ficando livres para os possuidores usá-los como bem lhes aprouver. Ficando tais beneficiários protegidos por um escudo, cujas identidades só a cúpula da RFB tem acesso – vedada a quebra do anonimato pelos Auditores Fiscais, que ficam impossibilitados de investigar livremente as origens daqueles ativos, se lícitas ou decorrentes de crimes.
O acesso imotivado, que em simbiose com as listas vip lhes dá guarida, vige pela Portaria RFB nº 2.344, de 24.03.2011, pois o poder legislativo não teve coragem de lhe dar status de norma legislada, quando o governo para tal apresentou a Medida Provisória 510/2010, que caducou, por ter aquele poder compreendido o absurdo do seu mérito, fato que, inclusive, inibiu reedição de MP ou envio projeto de lei para tal fim.
Além de todas essas benesses, militam a favor desses perniciosos contribuintes os sigilos fiscal e bancário, protegendo-os nas suas condutas criminosas.
Não se pode negar a importância da RFB, como órgão de Estado e instrumento na execução das políticas públicas, porquanto responde por quase totalidade das receitas carreadas ao Tesouro Nacional, necessárias à existência do país. Todavia, as benesses e entraves, descritos acima, demonstram que os governos nos últimos anos vem usando a RFB de forma pouco ortodoxa e a favor de grandes sociedades empresárias sonegadoras e fraudadoras do erário, em detrimento dos bons, médios e pequenos contribuintes cumpridores das obrigações tributárias, numa verdadeira política de Robin Hood às avessas, capaz de levar estes à bancarrota, pela concorrência desleal que provoca, coadjuvada pelos governos, por meio de créditos fartos com juros subsidiados à disposição daqueles e com a publicação de reiterados REFIS, que se retroalimentam num círculo vicioso.
Ademais, em vez de adotar postura de gestores de um órgão de estado, oferecendo propostas de políticas tributárias adequadas aos governos e o otimizando para bem servir a sociedade, as últimas e subservientes gestões da RFB, o têm usado muito mais para impor freios que obstam maior eficácia no combate à inadimplência e aos crimes contra a ordem tributária, postura que o leva a sofrer críticas mordazes.
Conclui-se, portanto, que a RFB, ainda que de forma anômala, está a serviço dos grandes e maus empresários e a subjugar os cidadãos de bem e bons contribuintes. Torná-la um órgão independente seria o ideal para corrigir essa distorção. Todavia, se se afastasse essa cúpula de gestores, que há muito tempo a vem gerindo com total subserviência a qualquer imposição governamental, já a melhoraria. E quem sabe os mais de 500 bilhões sonegados a cada ano seriam diminuídos.
(*) Presidente da Associação Goiana dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil – AGOFIP.